Acusados por morte de policiais, índios serão julgados em SP porque Justiça vê preconceito em Dourados
Desembargadores federais aceitaram os argumentos da defesa, para quem os douradenses não têm a imparcialidade necessária para o julgamento
O TRF3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região) tirou de Dourados o julgamento de índios acusados pelo assassinato de dois policiais civis em 2006. A Corte acredita que a sociedade douradense tem “um preconceito social grave contra os índios” da região e levou para São Paulo o júri que deverá dar fim ao caso que está sem solução há mais de 10 anos.
Carlito de Oliveira, Ezequiel Valensuela, Jair Aquino Fernandes, Lindomar Brites de Oliveira, Paulino Lopes, Hermínio Romero, Marcio da Silva Lins, Sandra Arevalo Savala e Valmir Junior Savala foram denunciados pelo brutal assassinato de Rodrigo Pereira Lorenzatto e Ronilson Bartie no dia 1º de abril de 2006.
Segundo a denúncia, às 16h30 daquele dia, na rodovia MS-156, entre a cidade de Dourados e distrito de Porto Cambira, em frente ao acampamento indígena "Passo Piraju", três investigadores do 1º DP (Distrito Policial) procuravam um foragido da Justiça que estaria escondido em meio aos índios desaldeados de Porto Cambira.
Ainda conforme a acusação, o veículo descaracterizado da Polícia Civil foi abordado pelos índios, que tomaram as armas dos policiais e os executaram com extrema brutalidade, a tiros e golpes de faca. Rodrigo Pereira Lorenzatto e Ronilson Bartie morreram no local. Ferido, Emerson Gadani fingiu-se de morto e conseguiu ser socorrido. Ele deixou a ativa por causa do trauma.
Mais de 10 anos depois, os acusados ainda não foram julgados e no início deste mês o júri que seria realizado na cidade foi desaforado para São Paulo. No dia 1º de setembro, foi publicada decisão unânime da Décima Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que julgou procedente o pedido feito pelo MPF (Ministério Público Federal) para que os acusados não fossem julgados em Dourados.
Havia dúvida sobre a imparcialidade do júri douradense, conforme o recurso em questão, motivo pelo qual foi proposto o desaforamento para uma das Varas Federais de São Paulo. Isso porque os procuradores da República alegaram que “os integrantes da sociedade de Dourados/MS adquiriram, ao longo dos anos, um preconceito social grave contra os índios que entre eles ou perto deles vivem”, acrescentando que “tal fato decorre desde o estranhamento puramente cultural até a luta e os graves conflitos fundiários que se estabeleceram em todo o Estado do Mato Grosso do Sul”.
“Apesar do tempo em que os fatos aconteceram (04/2006), a grave situação de conflito permanece inalterada até os dias atuais, sendo seu acirramento facilmente perceptível por todos os meios de comunicação, não existindo uma convivência emocional democrática entre brancos e índios na região. No caso, a situação é ainda mais grave, pois, além da disputa pela terra, figuram como vítimas no processo, Policiais Civis, razão pela qual se faz necessário o deslocamento do julgamento, a fim de garantir a imparcialidade do júri”, argumentou o MPF.
Relatora desse recurso, a desembargadora federal Cecilia Mello considerou ser “fato notório que o conflito indígena da região do Estado do Mato Grosso do Sul, que já resultou em inúmeras vítimas, evidencia uma situação de clara anormalidade, muito bem capaz de comprometer o interesse da ordem pública ou de afetar a imparcialidade do conselho de sentença, a justificar a adoção dessa providência extraordinária”.
No acórdão, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região pontuou que “a tensão atual e a extensão do conflito na região vem também comprovada pelas matérias jornalísticas nacionais e internacionais colacionadas aos autos e os recentes confrontos ocorridos entre índios e ruralistas, amplamente noticiados, nos dias 29/08/2015, no município de Antonio João/MS, e em 14/06/2016, na fazenda de Caarapó, região sul de Mato Grosso do Sul, ocasiões que culminaram na morte de dois indígenas e vários feridos, a demonstrar que continuam, ainda, presentes naquela região as condições de conflito envolvendo direitos indígenas sobre aquelas terras e que levaram à prática de atos incriminados na esfera penal”.
O desaforamento, para São Paulo, do júri referente a outro caso ocorrido em Mato Grosso do Sul, no qual não-índios foram acusados de atacar um grupo de Guarani Kaiowá em Juti nos dias 12 e 13 de janeiro de 2003, ocasião em que uma liderança indígena morreu, também foi mencionado no relatório da desembargadora federal.
Para o TRF3, “o conflito pulsante entre índios e não índios no Estado do Mato Grosso do Sul, acirrado pelos fundamentos étnicos, históricos, culturais, econômicos e etc. de ambos os lados, somado à sua repercussão regional, nacional e internacional, permitem e muito bem justificam que o julgamento seja desaforado para Foro não contíguo, onde poderão ser asseguradas todas as garantias necessárias para desejada intangilibilidade do julgamento”.
Esse crime que chocou a cidade resultou em ação que tramita sob segredo de Justiça na 1ª Vara Federal de Dourados. Como o processo subiu para instância superior, foram divulgados os nomes dos acusados. Eles chegaram a ser presos preventivamente 12 dias após o crime, mas foram soltos por meio de um habeas corpus concedido pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, que declarou a incompetência do Juízo de Direito da 1ª Vara Criminal da Comarca de Dourados para julgar o caso, direcionado em seguida à 1ª Vara da Justiça Federal.