Na Síria, Rússia mostra ao Ocidente poder de fogo renovado
Duas semanas de ataques aéreos e por mísseis na Síria deram à Inteligência e aos militares do Ocidente uma apreciação mais profunda da transformação que as Forças Armadas da Rússia passaram sob o presidente Vladimir Putin, demonstrando sua capacidade de realizar operações fora de suas fronteiras e dando uma demonstração pública de novas armas, táticas e estratégias.
Os ataques envolveram aeronaves nunca antes testadas em combate, incluindo o caça Sukhoi Su-34, que a Otan chama de Fullback, e um míssil de cruzeiro disparado de navios a mais de 1.500 km no Mar Cáspio, o que, segundo alguns analistas, ultrapassa o equivalente norte-americano em capacidade tecnológica.
Os jatos da Rússia lançaram ataques de apoio às tropas terrestres sírias avançando a partir das áreas sob o controle do governo sírio e em breve poderão fornecer apoio a uma ofensiva iraniana que na quarta-feira (14/10) parecia estar se formando na província de Aleppo, no norte. Esta coordenação reflete o que autoridades norte-americanas descreveram como meses de planejamento meticuloso por trás da primeira campanha militar russa fora de antigas fronteiras soviéticas desde a dissolução da União Soviética.
No total, as operações refletem o que as autoridades e analistas descreveram como uma modernização em curso na Rússia há vários anos, que foi pouco notada e ainda está incompleta, desenvolvida mesmo diante das pressões sobre o orçamento do país. E isso, como aconteceu com a intervenção da Rússia na vizinha Ucrânia, elevou o nível de alarme no Ocidente.
Em um relatório neste mês para o Conselho Europeu de Relações Exteriores, Gustav Gressel argumentou que Putin tinha supervisionado a mais rápida transformação das Forças Armadas do país desde os anos 30.
"A Rússia hoje é uma potência militar que poderia dominar qualquer um dos seus vizinhos, se estivessem isolados do apoio do Ocidente", escreveu Gressel, oficial da reserva do Exército austríaco.
Por enquanto, os aviões de combate da Rússia estão realizando quase tantos ataques contra os combatentes que se opõem ao governo do presidente Bashar al-Assad quanto a coalizão liderada pelos Estados Unidos vem realizando a cada mês contra o Estado Islâmico.
A operação na Síria -- ainda relativamente limitada -- tornou-se, com efeito, um campo de testes para uma Rússia cada vez confrontadora e desafiadora sob o governo de Putin. Na verdade, como o próprio Putin sugeriu no domingo, talvez a intenção da operação seja de enviar uma mensagem para os EUA e o Ocidente sobre a restauração da capacidade militar do país e seu alcance global, depois de décadas de decadência pós-soviética.
"Uma coisa é os especialistas estarem cientes de que a Rússia supostamente tem essas armas, outra coisa é verem pela primeira vez que elas realmente existem, que a nossa indústria de defesa as fabrica, que elas são de alta qualidade e que temos pessoas bem treinadas que podem fazer um uso efetivo das armas", disse Putin em uma entrevista transmitida pela televisão estatal. "Eles também viram agora que a Rússia está disposta a usá-las, se isso for do interesse de nosso país e do nosso povo."
A aquisição rápida e quase sem derramamento de sangue da Crimeia pela Rússia em 2014 foi efetivamente uma operação secreta. Seu envolvimento no Leste da Ucrânia, embora substancial, foi conduzido em sigilo e ofuscado por desmentidos oficiais de envolvimento direto russo. Os bombardeios na Síria, por outro lado, estão sendo conduzidos abertamente e estão sendo documentados com grande alarde pelo Ministério da Defesa, em Moscou, que distribui vídeos dos alvos da mesma forma que o Pentágono fez durante a Guerra do Golfo em 1991.
Isso também deu às autoridades e analistas uma visão maior de um Exército que, por quase um quarto de século após o colapso da União Soviética, era visto como decadente, insignificante, tão prejudicado por sistemas envelhecidos e consumido pela corrupção que não impunha uma ameaça real fora de suas fronteiras.
"Estamos aprendendo mais do que nos últimos 10 anos", disse Micah Zenko, membro sênior do Conselho de Relações Exteriores, observando o uso dos novos caças e do míssil de cruzeiro chamado Kalibr. "Como me disseram, estamos em uma escola sobre a capacidade militar russa de hoje."
Os avanços russos vão além de novos armamentos, refletindo um aumento no profissionalismo e na prontidão. A Rússia montou suas principais operações em uma base aérea perto de Latakia, no noroeste da Síria, em questão de três semanas, despachando mais de quatro dúzias de aviões de combate e helicópteros, dezenas de tanques e veículos blindados, sistemas de foguetes e artilharia, defesa aérea e alojamentos portáteis para até 2.000 soldados. Foi a maior operação de Moscou no Oriente Médio desde que a União Soviética enviou tropas ao Egito na década de 70.
"O que continua a me impressionar é a sua capacidade de transportar muito material muito longe e muito rápido", disse em uma entrevista o tenente-general Ben Hodges, comandante das forças norte-americanas na Europa.
Desde o início da sua campanha aérea, no dia 30 de setembro, a Rússia aumentou seus ataques aéreos de um punhado por dia para quase 90 em alguns dias, usando mais de meia dúzia de tipos de munições guiadas e não guiadas, incluindo bombas fragmentadas e destruidoras de bunkers contra alvos fortificados, segundo os analistas norte-americanos.
A Rússia não só está trazendo parte do seu maquinário mais avançado para a batalha, mas também enviou grandes cozinhas de campo e até mesmo dançarinas e cantores para entreter as tropas -- sinais de que Moscou está pensando no longo prazo, disseram os analistas norte-americanos.
"Eles trouxeram o pacote completo. Isso me mostrou que eles conseguem implantar uma força expedicionária de tamanho decente", disse Jeffrey White, que foi analista para o Oriente Médio da Agência de Inteligência de Defesa e hoje está no Instituto Washington para Política do Oriente Próximo.
Por enquanto, o foco da Rússia na Síria é, principalmente, uma campanha aérea com cerca de 600 fuzileiros navais em terra para proteger a base aérea em Latakia. Putin excluiu a ideia de enviar uma força terrestre maior para ajudar os sírios.
Michael Kofman, analista do CNA Corp., um instituto de pesquisa sem fins lucrativos, e membro do Instituto Kennan em Washington, que estuda os militares russos, disse que as operações na Síria mostraram que a Rússia atingiu as capacidades que os Estados Unidos têm usado em combate desde os anos 90. Isso é um progresso significativo, pois a Rússia tinha ficado muito para trás.
"A realização de ataques noturnos, com avaliações de danos por drones, foi um salto tangível para a Rússia, que assim atinge capacidades ocidentais dos anos 90 e até atuais", disse ele.
A força aérea russa sofreu uma série de acidentes de treinamento durante a primavera e o verão, perdendo pelo menos cinco aviões em questão de meses, o que Kofman descreveu como "dores de dentição", enquanto os pilotos aumentavam o ritmo operacional sob as ordens de Putin. Mesmo assim, a aviação da Rússia "muitas vezes é pintada no Ocidente como uma espécie de aldeia de Potemkin, e não é o caso".
Ele e outros disseram que a maior surpresa até agora foi a tecnologia dos mísseis. Os mísseis de cruzeiro lançados de fragatas e destroieres russos no Mar Cáspio foram testados pela primeira vez em 2012. Com um alcance de até 1.500 km, eles não tinham sido utilizados em combate antes, e apesar da perda de quatro mísseis que caíram inclusive no Irã, eles representam um salto tecnológico que poderia se provar preocupante para os comandantes militares da Otan. Ele observou que o avanço em tecnologias de mísseis melhorou a precisão e o poder de fogo até mesmo dos navios ou aeronaves da era soviética.
"Esta é uma nova arma surpreendentemente capaz", acrescentou.
Tradutor: Deborah Weinberg