Pesquisa científica destrói mito do “paciente zero” do HIV

Gaétan Dugas foi um comissário de bordo canadense que tornou-se conhecido como o responsável por trazer o vírus HIV para os Estados Unidos – batizado como “paciente zero” em um estudo feito em 1984 pelo Centers for Disease Control and Prevention, um dos principais órgãos de saúde pública dos EUA. O jornalista Randy Shilts tornou sua figura conhecida em seu livro And The Band Played On, sobre o início da epidemia do HIV, descrevendo-o como um gay promíscuo que intencionalmente espalhou o vírus pelo país, apesar de saber-se soropositivo. Dugas passou a ser o culpado pela crise da Aids nos anos 1980 e 1990.
Um novo estudo feito por pesquisadores da Universidade do Arizona em Tucson, no entanto, descobriu que a epidemia começou antes de Dugas contrair o vírus – e em localidades em que ele não estava. Segundo a revista Science, a equipe comandada pelo microbiologista Michael Worobey comparou amostras de sangue de Dugas recolhidas em 1983 com amostras dos primeiros portadores do vírus HIV coletadas em 1978 e 1979 para estudos sobre hepatite B. Usando uma técnica conhecida como “relógio molecular”, os cientistas conseguiram montar uma árvore genealógica das mutações do vírus. Os vírus presentes nas amostras de Dugas caíam no meio da árvore, o que desmente a afirmação de que ele teria trazido o HIV para os EUA.
Os resultados obtidos por Worobey apontam que “no final dos anos 1980, a epidemia do HIV já exibia ampla diversidade genética – principalmente na cidade de Nova York”. A doença não poderia ter sido trazida pelo comissário para os EUA na década de 1980, portanto. Os pesquisadores acreditam que o vírus imigrou da África para o Caribe em 1967, e de lá foi transmitido pelo continente até alcançar Nova York em 1970, e San Francisco em 1975.
A narrativa do “paciente zero” vem da intenção de culpar a promiscuidade dos gays pela epidemia, colocar a Aids como punição por seu “mau comportamento”, e desejo de encontrar um bode expiatório. Em seu livro, Shilts afirmava que “Não há dúvida que Gaëtan [sic] teve um papel-chave em espalhar o novo vírus de uma ponta a outra dos Estados Unidos”. Reportagens posteriores passaram a afirmar que Dugas era o vilão da história. A revista People o destacou numa lista feita em 1987 das pessoas “mais intrigantes do ano”, afirmando que “sua libido feroz deu ímpeto a uma epidemia que tomou sua vida e a de milhares de outras pessoas”. A revista Time culpava explicitamente Dugas pela epidemia. Uma manchete do jornal New York Post chegou a proclamar: “O HOMEM QUE NOS DEU AIDS”.
“O Paciente Zero tornou-se um símbolo conveniente para uma cultura pronta para entrar em pânico por causa dos gays e dos micróbios que nadavam em seus corpos”, explicou Gregg Gonsalves, ativista do HIV/Aids ao site Vox. “Shilts criou uma nova Maria Tifoide na figura de Dugas, e permitiu que a história da origem dessa nova doença contasse com um vilão de nome estrangeiro e sexualidade fora de controle.”