Após denúncias, Defensoria descobre clínica psiquiatrica irregular na Capital
Após receber diversas denúncias de assistidas e assistidos, a Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul descobriu um “manicômio clandestino” em Campo Grande.
O local foi vistoriado e a instituição constatou situações desumanas como tortura, cárcere privado, abuso na manipulação de medicamentos, instalações insalubres e total ausência de prescrições médicas adequadas.
Na Justiça, a Defensoria conseguiu que a suposta “clínica de reabilitação” para dependentes químicos fosse impedida de receber novos pacientes e ainda removesse publicidade em que oferecia os “serviços”.
A Ação Civil Pública é assinada pela coordenadora do Núcleo de Atenção à Saúde (NAS), defensora pública Eni Maria Sezerino Diniz.
Sofrimento e Denúncia
Conforme a coordenadora, em maio deste ano a coordenação do NAS recebeu denúncias de maus tratos e cárcere privado de pessoas com dependência química que estariam sendo praticados pela entidade que embora se autodenominava ‘clínica’, na realidade tratava-se de uma comunidade terapêutica localizada nas imediações do Bairro Chácara dos Poderes.
Segundo denúncias recebidas, era informado que o local contava com aparato médico e psicológico para o tratamento, e que uma equipe devidamente habilitada iria até a residência buscar o paciente para levá-lo involuntariamente para a entidade.
Porém, conforme a apuração, “a parte era levada involuntariamente de sua residência sem que tivesse passado por qualquer tipo de avaliação médica previamente, e transportado em uma ambulância por pessoas que mais tarde soube-se que seriam outros pacientes acolhidos que estavam há mais tempo na entidade”, detalha a coordenadora.
Constatou-se, ainda, que os internos não eram avaliados por médicos e também não eram encaminhados para atendimento na Rede de Atenção Psicossocial.
Vistoria chocante
Diante dos relatos, a Defensoria Pública de MS organizou com urgência uma vistoria técnica para apurar as denúncias e verificar a situação dos pacientes acolhidos na entidade.
A vistoria foi realizada no mesmo mês pela coordenadora do NAS, pela coordenadora do Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos (Nudedh), defensora pública Thaisa Raquel Medeiros de Albuquerque Defante e por uma promotora de Justiça.
Foi solicitado acesso às instalações e entrevista aos acolhidos, o que foi livremente franqueado pelo proprietário do local.
“Segundo informações do proprietário, a capacidade de lotação era de 60 vagas, no entanto, no dia da vistoria técnica, havia no local um quantitativo de 65 homens acolhidos, dos quais cinco atuariam também como coordenadores do local. A idade dos acolhidos era entre 20 e 75 anos”, pontuou a coordenadora.
Os acolhidos eram de várias cidades do Estado; além de Campo Grande, haviam pessoas de Sidrolândia, Amambai, Aral Moreira, Juti, Fátima do Sul, Jardim e Naviraí.
“A primeira observação do local foi a existência de cadeados nos portões, concertina nos muros, e presença ostensiva de pessoas com rádio comunicadores, tudo para evitar a fuga do local. Os acolhidos não tinham livre trânsito e nem permissão para saída, e também não tinham livre acesso aos familiares”.
Também foi verificado que, embora a entidade se intitule como sendo ‘clínica de reabilitação’, o local não possui registro no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), o que também foi confirmado pelo proprietário. Além disso, não haviam médicos no momento da vistoria.
“A situação encontrada foi assombrosa e estarrecedora do ponto de vista da condição psíquica dos acolhidos. Na entrevista com alguns deles foi possível identificar que todos estavam ali de forma involuntária e nenhum foi submetido a avaliação médica preliminar”.
Além disso, conforme a coordenadora do NAS, em nenhuma das pastas dos acolhidos foram localizados laudos médicos que justificassem necessidade de internação involuntária dos acolhidos, apenas receituários prescritos por um médico, cuja especialidade consta como sendo ginecologista e obstetra, que uma vez ao mês comparecia ao local para prescrever medicamentos aos pacientes.
Cozinha
Permanecem separados dois ambientes distintos: uma cozinha ampla e organizada que estava com a porta trancada e não era utilizada.
“No lado de fora, em área adjacente, há uma construção em péssimo estado de conservação que, de fato, é utilizada como cozinha com um fogão à lenha onde os alimentos do almoço estavam sendo preparados. Esta cozinha adjacente é completamente insalubre, com mau cheiro e muitas moscas e insetos onde os alimentos estavam sendo manipulados para o almoço que estava sendo preparado em ambas ocasiões”, afirma a defensora.
Desumanidade e tortura
“Foram identificados idosos com problemas de alcoolismo em situação completamente degradante e sem o atendimento adequado. Ainda haviam indícios de supermedicação para tornar letárgicos os acolhidos considerados difíceis ou problemáticos, e limitação e proibição de contatos com familiares. Um dos acolhidos estava dormindo e, por mais que se tentasse, não foi possível acordá-lo. Nesse momento, um dos ‘coordenadores’ disse que ele estava medicado”, detalha.
Durante as entrevistas, foi possível ainda identificar violações emocionais e prática de tortura psíquica visando evitar fugas e o enquadramento e obediência restrita às normas da instituição.
O proprietário foi advertido que não poderia manter pessoas involuntariamente naquele local, pois, além de não ser entidade com ambiente hospitalar e não haver laudos médicos que justificassem a permanência do paciente segregado, a situação caracterizava cárcere privado e violação grave aos direitos dos pacientes.
A Defensoria Pública firmou o compromisso expresso com o proprietário de que seria permitida a saída de todos os que desejassem deixar a entidade.
Dias depois, a Defensoria realizou segunda visita técnica ao local acompanhada de dois médicos psiquiatras da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) de Campo Grande, que fizeram a avaliação médica dos acolhidos, e um representante do Conselho Regional de Farmácia (CRF/MS), que fez a avaliação da dispensação e estoque de medicamentos.
Nessa segunda vistoria, mesmo após os esclarecimentos dados anteriormente, a Defensoria encontrou pacientes admitidos de forma involuntária, situação caracterizadora da manutenção da situação de ilegalidade.
Contrato abusivo
Foi observado, ainda, a entidade firmava contrato com os familiares dos acolhidos, fazendo-se uma espécie te contrato para internação involuntária, porém sem qualquer avaliação médica prévia, prática em desconformidade com a Lei n.º 10.216/2001.
No contrato era prevista, ainda, imposição de multa aos familiares, caso o paciente evadisse ou desistisse do tratamento. Além disso, era previsto que eventual fuga seria considerada crime passível de realização de boletim de ocorrência junto à Polícia Civil.
A Lei
Conforme a Organização Mundial de Saúde (OMS), a dependência química é considerada um transtorno psiquiatrico.
“Nesse contexto, há que se invocar a Lei n.º 10.216/2001, intitulada Lei Antimanicomial / Lei da Reforma Psiquiátrica, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais, tendo como diretriz a instituição de uma política pública pautada no respeito à dignidade e à integridade dos indivíduos com transtornos mentais”.
Assim, são assegurados à pessoa com transtorno mental, dentre outros, o direito de ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades; o direito ser tratada com humanidade e respeito, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade; o direito de ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis e o direito de ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental.
“Com vistas a efetivar esses direitos, a Lei 10.216/2001 prevê que a internação, em qualquer de suas modalidades, deve ser o último recurso no tratamento, sendo cabível apenas quando os recursos extra-hospitalares forem insuficientes, sendo realizada somente mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos e quando indicada por profissional devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina do Estado”.
Além disso, a lei determina que o tratamento em regime de internação deve se dar em instituições que não tenham caráter asilar e que tenha estrutura capaz de oferecer assistência integral à pessoa com transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais e de lazer.
“No mais, a lei assevera que a internação deve durar o menor tempo possível, buscando-se sempre a reinserção do paciente em seu meio. No mesmo sentido, dispõe a Portaria n.º 2391/GM, de 2002, do Ministério da Saúde, prevendo que a internação psiquiátrica somente deverá ocorrer após todas as tentativas de utilização das demais possibilidades terapêuticas e esgotados todos os recursos extra-hospitalares disponíveis na rede assistencial, com a menor duração temporal possível”.
Ações
Segundo a defensora, nenhum dos direitos assegurados na lei básica de saúde mental e nas demais normativas que regem a matéria foi assegurado àqueles que estão internados no local.
“O que foi observado e relatado enquanto prática de atendimento foi o cárcere, a contenção dos corpos, a intimidação, a medicalização excessiva, a insuficiência e despreparo de profissionais de saúde, a oferta massificada de um plano “terapêutico”. No ambiente supostamente terapêutico, lhes são negados direitos básicos, porém, de outro lado, lhes sobram ameaças, agressões físicas, sedação, abusos e, sobretudo, violência de todas as espécies: física, psicológica, moral e institucional”.
Diante dos fatos, a Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul ingressou com Ação Civil Pública e conseguiu na Justiça liminar que proíbe a clínica de receber novos pacientes até que comprove que está adequada a lei para operar. Além disso, o local deve remover toda propaganda e publicidade que oferece seus serviços a sociedade.