Presidente, procurador jurídico e servidor da Câmara tornam-se réus em ação por improbidade administrativa
Ministério Público ingressou com processo por causa da concessão supostamente ilegal de licença para capacitação no exterior
O presidente da Câmara de Dourados, vereador Idenor Machado (DEM), o procurador jurídico da Casa de Leis, Sérgio Henrique Pereira Martins de Araújo, e o servidor público municipal Carlos Roberto Assis Bernardes, conhecido como Carlinhos Cantor, tornaram-se réus em um processo por improbidade administrativa movido pelo MPE-MS (Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul).
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Já aceito pelo juiz Jonas Hass Silva Júnior, o processo de número 0803477-94.2014.8.12.0002 corre na 5ª Vara Cível de Dourados. Através dessa Ação Civil de Improbidade Administrativa a 16ª Promotoria de Justiça aponta irregularidades na concessão de licença para capacitação no exterior ao servidor efetivo da Câmara conhecido como Carlinhos Cantor, que passou quase sete meses nos Estados Unidos.
Além de apontar a ilegalidade do benefício concedido ao servidor, que já foi parlamentar, presidiu a Câmara e ocupou o cargo de vice-prefeito na gestão Ari Artuzi (de 2009 a 2010), o MPE acusa Idenor e Sérgio Henrique de terem omitido a portaria que divulgava a concessão da licença. A ação ainda pede o ressarcimento de R$ 66.596,40 aos cofres públicos, soma dos salários pagos pela Câmara a Carlinhos Cantor enquanto esteve fora do Brasil.
Essa denúncia do MPE chegou ao Judiciário no dia 25 de abril de 2014, assinada pelos promotores Luiz Gustavo Camacho Terçariol e Amilcar Araújo Carneiro Júnior, responsáveis à época pelas 12ª e 16ª promotorias, respectivamente. Se condenados, os réus podem ser punidos com a perda da função pública, a suspensão dos direitos políticos de oito a 10 anos, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário.
Idenor Machado, Sérgio Henrique Pereira Martins de Araújo e Carlos Roberto Assis Bernardes negam as irregularidades e chegaram a pedir o arquivamento da ação. Contudo, o magistrado decidiu dar seguimento ao processo “considerando que há indícios de que os fatos narrados” pela acusação “podem constituir atos de improbidade administrativa”.
Depois que refutou os argumentos apresentados pelos acusados na tentativa de barrar o processo, o juiz os intimou, agora na condição de réus, para novas manifestações de defesa. Atual responsável pela acusação, o promotor Ricardo Rotunno, que atua em defesa do patrimônio público e social, pede a condenação por improbidade administrativa dos três e devolução de valores pagos de forma supostamente irregular ao servidor.
Carlos Roberto Assis Bernardes, o Carlinhos Cantor, ingressou no quadro efetivo de servidores da Câmara de Dourados em 27 de março de 1989. Em 2003 assumiu uma vaga de vereador depois que Ari Artuzi, de quem era suplente, foi eleito deputado estadual. Três anos depois, em 2006, chegou à presidência da Casa de Leis e quando Artuzi assumiu a prefeitura, em 2009, ocupou o cargo de vice-prefeito.
No entanto, essa gestão municipal chegou ao fim no dia 1º de dezembro de 2010, quando prefeito e vice renunciaram, ainda na cadeia, após serem preso pela Polícia Federal na Operação Uragano, que resultou também na queda de nove vereadores sob acusação de desvio de dinheiro público, entre outros crimes contra o erário.
Depois da renúncia, Carlinhos Cantor recebeu o benefício da liberdade provisória enquanto seguisse na condição de réu nas ações cíveis e criminais resultantes da Operação Uragano. No entanto, mesmo após deixar o cargo eletivo, não voltou às atividades como servidor público municipal. À ocasião, apresentou atestado médico no qual alegou sofrer de transtorno depressivo recorrente.
No dia 13 de fevereiro 2012, ele solicitou à Câmara uma licença de capacitação no exterior pelo período de dois anos, a partir de 1º de abril. No documento Carlinhos Cantor argumentou que a licença seria necessária por ele ter passado muito tempo fora das funções no Legislativo, submetendo-se a tratamento médico intensivo.
“Aliado a isso, surgiu-me uma oportunidade de fazer um curso de Gestão na área de Dependência Química e Gestão Administrativa”, alegou o servidor, acrescentando: “Esse período, Senhor Presidente, além de contribuir na minha reabilitação profissional, irá me qualificar ainda mais no desempenho das minhas funções em benefício do município”.
De acordo com o processo ao qual a 94 FM teve acesso, no dia 17 de fevereiro de 2012 o então procurador da Câmara Christopher Banhara Rodrigues emitiu parecer esclarecendo que as únicas exigências pendentes para a concessão da licença eram a documentação relacionada ao curso do qual participaria o servidor, que deveria ser de especialização stricto sensu em nível de mestrado ou de doutorado, como prevê a legislação.
Segundo o MPE, no entanto, “apesar do réu Carlinhos Cantor não demonstrar ter sido aprovado em qualquer curso de especialização strictu sensu, constata-se por meio da Portaria no 136/2012, que lhe foi concedida licença para capacitação profissional, a qual perdurou pelo período de 06 (seis) meses e 29 (vinte e nove) dias”.
Para a Promotoria, a licença “foi concedida sem qualquer amparo legal, ao total arrepio da legislação vigente”. Isso porque, como relatado no decorrer do processo, a qualificação obtida por Carlinhos Cantor nos quase sete meses que passou nos Estados Unidos foi no curso ESL (Inglês como Segunda Língua).
Nesse período fora do Brasil, o servidor público municipal seguiu a ter os salários pagos regularmente pela Câmara de Dourados. Anexados ao processo, os holerites de Carlinhos Cantor, ocupante do cargo efetivo de Assessor Legislativo Classe VII, indicam que ele chegou a ter vencimento bruto de R$ 8.808,82 em junho de 2012.
A partir de cálculos próprios, o MPE aponta “prejuízo ao erário no valor de R$ 66.596,40 (sessenta e seis mil quinhentos e noventa e seis reais e quarenta centavos), pois o referido servidor percebeu remuneração sem laborar utilizando-se de um benefício concedido irregularmente pelos réus”. E cobra o acréscimo de juros e correção monetária no ressarcimento.
Sem transparência
Um agravante apontado pela acusação é que a Portaria que concedeu o benefício ao servidor “não foi publicada no tempo oportuno e devido, qual seja, no dia 09 de julho de 2012”. Consta na denúncia oferecida pelo MPE que a publicação da portaria só ocorreu no dia 08 de outubro de 2012.
Esse atraso na publicação, segundo o promotor, configura “ato de improbidade administrativa por parte dos responsáveis Idenor Machado e Sérgio Pereira Martins Araújo”. No processo o MPE revela que na edição do dia 9 de julho de 2012 do Diário Oficial do Município, foram publicadas a Portaria no 135 e, em seguida, “pulou-se” para a Portaria no 137. “Assim, inexplicavelmente, a Portaria no 136/2012 não foi publicada, havendo nítido desrespeito ao princípio da publicidade”.
Na denúncia, o promotor afirma que “é alarmante a jactância dos réus, que concederam uma licença ‘às escuras’ para a capacitação, pasme-se, num curso de Inglês”.
Prorrogação e prisão
Ainda conforme a Promotoria, “as vésperas do vencimento do prazo da licença ilegal concedida, o réu Carlos Roberto solicitou à Câmara prorrogação de sua licença até 30/04/2013, pedido este que foi em princípio negado na data de 03/12/2012, pelos réus Idenor Machado e Sergio Henrique Martins de Araújo”.
Mas no dia 19 de dezembro de 2012 o MPE acionou o Judiciário com pedido de revogação da liberdade provisória e decretação de prisão preventiva de Carlinhos Cantor, ao constatar que ele ausentou-se da Comarca mesmo na condição de réu de processos oriundos das operações Brothers e Uragano, ambas desencadeadas pela Polícia Federal em 2010.
No dia 26 de dezembro daquele ano, contudo, a Câmara autorizou a prorrogação do prazo da licença até 30 de abril de 2013. Para o promotor, Idenor e Sérgio Henrique tiveram o “claro intuito de favorecer” Carlinhos Cantor, “na intenção de atender os interesses particulares” do servidor “em total afronta ao princípio da legalidade, impessoalidade e moralidade, incorrendo assim em atos de improbidade administrativa”.
Como Carlinhos Cantor não poderia ausentar-se da Comarca por mais de oitos dias, no dia 6 de fevereiro de 2013 o juiz Rubens Witzel Filho, da 1ª Vara Criminal de Dourados, atendeu ao pedido do MPE e determinou a revogação da liberdade provisória e decretação da prisão preventiva do servidor público.
Carlinhos Cantor ainda tentou reverter essa decisão da Justiça, mas voltou ao Brasil e se apresentou ao 1º Distrito Policial de Dourados no dia 3 de maio de 2013. Preso, ele foi encaminhado à penitenciária, onde ficou por aproximadamente 10 dias, até que um habeas corpus lhe devolveu a liberdade.
Defesa
Na fase inicial do processo, antes mesmo da denúncia ser aceita pelo juiz Jonas Hass Silva Júnior, os acusados pediram o arquivamento da ação. Idenor, Sérgio Henrique e Carlinhos Cantor refutaram os argumentos apresentados pelo MPE e garantiram que não houve qualquer ato ilegal na concessão da licença ou nos pagamentos ao servidor beneficiado. Quanto à publicação tardia da portaria que divulgava o ato, alegaram que ocorreu um erro interno que a levou a ser arquivada equivocadamente.
O presidente e o procurador jurídico pediram a rejeição da ação de improbidade administrativa proposta pelo MPE pela “inexistência de ato de improbidade, face a legalidade na concessão da licença de Capacitação ao servidor Carlos Roberto de Assis Bernardes, bem como pela ausência de má-fé na conduta dos Requeridos, Idenor Machado e Sérgio Henrique Pereira Martins de Araújo, descaracterizando a tipificação da suposta infração”.
Os representantes do Legislativo pediram ainda a rejeição da ação “em face do Terceiro Requerido (Sérgio Henrique Pereira Martins de Araújo) pela impossibilidade de responsabilizar o parecerista pelos feitos do ato administrativo”.
Já a defesa de Carlinhos Cantor, assinada pelo advogado Alziro Arnal Moreno, alegou que ele, “como funcionário, e munido de autorização simplesmente agiu no estrito regular de seu direito, participando de curso de capacitação, agindo em estrita boa-fé”. Por essas e outras razões elencadas no processo, solicitou que o pedido do MPE fosse julgado improcedente.
No entanto, as alegações dos acusados não impediram o magistrado da 5ª Vara Cível de Dourados de aceitar a denúncia oferecida pela 16ª Promotoria. “A priori, não restou demonstrada a inexistência do ato de improbidade, da improcedência da ação ou da inadequação da via eleita, motivo pelo qual a inicial deve ser recebida”, pontuou em trecho do despacho publicado no dia 18 de novembro de 2015.
“Desta forma, considerando que há indícios de que os fatos narrados na inicial podem constituir atos de improbidade administrativa, nos termos da Lei no. 8.429/92, recebo a ação e determino a citação dos réus para que, em 15 dias, apresentem contestação”, determinou o magistrado. Atualmente o processo segue com intimações para novas manifestações das partes.